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Nos últimos três anos, uma pequena revolução capilar se popularizou no Brasil. Donas e donos de madeixas cacheadas ou crespas, cansados de não encontrar produtos específicos ou serem pressionados a recorrer aos alisamentos, começaram a aderir a duas técnicas de tratamento que ficaram conhecidas na internet como “Low Poo” e “No Poo”.

Pra quem não saca muito do assunto, vale uma pequena aula. As tais técnicas se inseriram no contexto de revalorização do cabelo crespo e cacheado natural, contra as chapinhas e alisamentos agressivos oferecidos em praticamente todos os salões de beleza Brasil afora. Ambas as técnicas prometem tratar bem do cabelo cacheado por meio de uma espécie de “dieta” capilar, com restrição do tipo de xampu (a expressão “poo” em Low e No Poo vem daí) e outros produtos nocivos aplicados no cabelo.

O “No Poo”, como o próprio nome entrega, é uma técnica que não utiliza nenhum tipo de xampu para tratar e limpar o cabelo. Já o “Low Poo”, por sua vez, permite alguns tipos de xampu, especialmente os sem sulfatos fortes na sua composição, acusados de serem um dos grandes vilões para os cabelos em geral. Ambas as práticas também vetam alguns tipos de substâncias, como derivados de petróleo e silicones fortes, presentes na fórmula da maioria dos produtos disponíveis no mercado de cosméticos.

As técnicas ficaram tão conhecidas que já existem centenas de grupos e páginas no Facebook criadas para adeptos. Vai desde “Low/No Poo das Minas”, “No e Low Poo Vegano” até páginas meméticas chamadas “No/Low Poo da Depressão”. Fora as páginas e grupos no Facebook, muitas blogueiras dedicam seu conteúdo ao ensino da prática, além de diversas reportagens escritas sobre o tema e várias marcas de cosméticos que lançaram produtos próprios para essas técnicas — a própria Bioextratus dedicou uma linha completa de produtos para aproveitar a febre do “No Poo” e “Low Poo”.

Porém, há pouco mais de uma semana, uma marca norte-americana chamada Deva Curl publicou um comunicado no Facebook dizendo que os nomes “Low Poo” e “No Poo” são marcas registradas desde o começo dos anos 2000. Por esse motivo, o comunicado deu a entender está proibida a utilização dos nomes das técnicas nas redes sociais sem vinculação direta com os produtos da Deva Curl.

No dia 30 de julho, o comunicado sobre a marca registrada foi apagado do Facebook após uma onda de revolta dos consumidores. Em um pedido de desculpas, o CEO da marca Colin Walsh diz que a “notificação judicial não autorizada, e incorreta, escrita por nosso advogado no Brasil, causou grande confusão e transtorno”.

AS ORIGENS

Antes da polêmica na redes e das técnicas se tornarem tão populares no Brasil, os nomes “Low Poo” e “No Poo” surgiram nos Estados Unidos depois de uma parceria entre o brasileiro Denis da Silva e a norte-americana Lorraine Massey. Em 1990, a dupla abriu uma rede de salões em Nova York chamada Devachan — até hoje um sucesso estrondoso que fez de Denis um feliz milionário que lucra US$ 10 milhões de dólares por ano com o negócio.

É também de Denis e Lorraine os conceitos Low e No Poo, criados alguns anos depois da inauguração do salão como forma de oferecer uma linha mais natural de produtos para cabelos cacheados. Com o livro O Manual da Garota Cacheada escrito por Lorraine em 2002, os conceitos se popularizaram ainda mais, bem como a venda dos produtos nos Estados Unidos. Lorraine, então, deixou a direção da Devachan em 2013, pouco tempo depois que os produtos da Deva Curl começaram a ser vendidos no Brasil.

Com a ajuda do irmão Almiro Nunes, Denis abriu, em 2011, um salão no Brasil chamado Clínica dos Cachos, muito elogiado por orientar as clientes a como cuidar dos cachos sem recorrer à química. Nesse meio tempo, os conceitos de Low e No Poo foram disseminados no país muito graças as redes sociais, tornando-se a febre que é sobre tratamento capilar.

Uma das blogueiras brasileiras mais versadas (e mais conhecida por isso) No Poo e o Low Poo é a carioca Mari Morena, cujo canal no YouTube que leva o seu nome já conta com mais de 165 mil inscritos. Mari é vista como uma “guru” das adeptas e adeptos das técnicas. Por telefone, a vlogger explica que o No/Low Poo revolucionou muito a vida de mulheres negras e de quem é dono de uma cabeleira cacheada ou crespa. “As formas normais que aprendíamos [a tratar o cabelo] simplesmente não funcionavam muito bem para cabelo cacheado e crespo. Esses tipos de cabelo são muito ressecados e a maioria dos produtos da indústria não são feitos para eles, mas sim para quem tem cabelo liso”, diz ela. “Um padrão mais eurocêntrico mesmo. Essas técnicas [No/Low Poo] funcionam muito bem para a gente e traz um resultado que antes não era possível alcançar com os produtos do mercado.”

MARCA REGISTRADA®

Depois da popularização dos termos na internet, a Deva Curl, por sua vez, está tentando impedir que os nomes No Poo e Low Poo sejam usados desvencilhados da marca. Por isso, a Deva alertou que os nomes foram devidamente registrados no Brasil e em outros país.

“Por serem marcas registradas no Brasil e em vários países do mundo, não podem ser usadas sem nossa autorização como nomes de comunidades ou perfis em redes sociais, a não ser que sejam autorizados pela própria marca Deva® Curl”, diz o comunicado publicado no dia 20 de julho, apagado posteriormente.

“É permitido [o uso dos nomes] desde que usados corretamente, como marcas registradas No-Poo® e Low-Poo® e para distingui-los dos demais produtos no mercado em suas atividades comerciais, porém, nunca como nomes genéricos, os quais não são”, frisa o comunicado deletado.

De fato, em uma rápida consulta no INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial), é possível ver que a marca protocolou uma petição solicitando o registro os nomes Low Poo e No Poo em 2004, com concessão feita em 2007 quando os termos ainda não eram populares.

NA LETRA FRIA

Maurício Lia, advogado especializado em propriedade intelectual e sócio do Lia & Barbosa Associados, diz que a Deva Curl está no seu direito de retomar o controle do uso dos nomes. “A utilização indevida do nome causa um prejuízo à marca e ela está fazendo o caminho certo para evitar a diluição da marca. ”

Lia explica que esse processo chamado de diluição acontece quando uma marca se torna tão conhecida por um de seus produtos ou serviços a ponto de ser usada como sinônimo dos produtos ou serviços de forma geral. A marca se torna genérica.

Leo Wojdyslawski, advogado especializado em direitos autorais e sócio do escritório Cesnik, Quitino & Salinas Advogados, explica que a postura da Deva Curl é uma estratégia comum quando a empresa quer evitar a diluição da marca e também não deseja que a marca seja sinônimo de todos os produtos similares. “Tipo a Formica, Havaianas, Maizena, entre outras”, exemplifica.

Por isso, uma das primeiras medidas da Deva Curl foi enviar uma notificação para a dona do grupo “No e Low Poo Iniciantes”, um dos maiores e mais populares grupos sobre o tema no Facebook, exigindo que o nome do grupo e da sua lojinha virtual fossem alterados dentro de um prazo estipulado como forma de evitar uma ação judicial.

A dona do grupo não quis conceder uma entrevista à VICE por medo de represálias, mas chegou a publicar um comentário indignado na página na página da Deva Curl explicando que nunca tentou faturar em cima da marca com sua pequena loja virtual. Segundo ela, chegou a gastar tudo que não tinha para mudar o domínio do site da sua loja. Esse controle de danos da marca causou uma comoção bastante negativa entre os consumidores, já que muita gente conheceu os produtos da Deva por conta da própria popularização das técnicas que a marca criou.

A vlogger Mari Morena diz que ainda não recebeu nenhuma notificação da Deva e por isso continuará citando os termos. Nos mais de 200 vídeos publicado no seu canal, quase todos mencionam os nomes No Poo e Low Poo. “Se acontecer vai ser complicado, porque vou ter que tirar todos esses vídeos do ar, já que cito esses nomes em praticamente todos [os vídeos]. Vai ser uma perda muito grande, porque tem muita gente que descobre muita coisa e até sobre os produtos deles pelo meu canal. Acho que vai causar um rebuliço grande se eu tirar tudo do ar”, conta.

E AGORA?

Por e-mail, Denis da Silva explicou que não pretende notificar nenhuma blogueira ou youtuber para impedir que usem o termo. “Aqui nos Estados Unidos temos muita gente das redes sociais usando. Lembramos que o movimento hoje no Brasil saiu daqui [dos EUA]. Os grupos sempre usaram tanto aqui como em outras partes do mundo”, diz o criador da marca.

De acordo com Denis, a questão toda não se trata de prejuízo econômico, mas sim de confusão, já que oito empresas brasileiras usaram os nomes da Deva sem terem o direito sobre as marcas. O cofundador também esclarece que o registro de marca é normal na indústria, para proteger a criação de cada companhia.

“Se foram eles quem primeiramente deram o nome desse tipo de produto e obtiveram o registro, esse controle é legítimo”, adverte o advogado Wojdyslawski. “O uso do termo como marca depende da autorização deles, mas pela lei 9279/96 existe o direito de citação, que não depende de autorização.”

O comunicado, porém, não agradou muita gente, inclusive a própria Mari Morena que considerou a ação da marca “um tiro no pé”. “Ninguém estava fazendo nada de errado, principalmente porque muitas pessoas conhecem a Deva Curl a partir desses grupos, de blog e de canais do Youtube,” coloca.

“Nós vamos continuar trabalhando como sempre fizemos para oferecer produtos de excelência para todos os tipos de cachos — desde cabelos ondulados até afro. Enquanto todos diziam que a moda era alisamento ou chapinha, nossa bandeira sempre foi os cachos livres, e continuará sendo. Vamos continuar como sempre continuamos… com a verdade. Primeiro, não há proibição para grupos das redes sociais. Segundo, o nosso trabalho é sério e estamos cada vez mais aumentando o número de cabeleireiros especializados em cabelos para todos os tipos de cacho pelo mundo todo”, frisa Denis da Silva.

Questionado sobre a situação da dona das páginas, grupos e a loja no Facebook, a resposta de Denis foi sucinta. “Isso está sendo alinhado com o jurídico. O que não pode é [existir] sites com os termos em seus domínios que vendem produtos em geral.”

No novo comunicado, a marca frisa (assim como Denis da Silva disse à VICE) que não pretende proibir o uso dos nomes registrados pela Deva Curl “em suas discussões, postagens ou comunicações sobre cabelos cacheados”. Apesar de Denis não querer a proibição do uso dos termos, o posicionamento enviado por e-mail ficou confuso porque a marca notificou extrajudicialmente a dona do grupo do Facebook “No e Low Poo Iniciantes”, e pediu para que ela mudasse os nomes dos grupos. Entretanto, a dona da comunidade diz que não recebeu até agora nenhuma mensagem direta da Deva retirando a ordem de mudar o nome do grupo do Facebook ou um pedido de desculpas. O que, efetivamente, aconteceu foi a mudança do nome de um dos grupos mais populares sobre tema no Facebook para”Rotina Saudável”.

Após a publicação desta reportagem, uma blogueira (que não quis se identificar) que também compartilha dicas e orientações sobre as práticas Low Poo e No Poo, informou à VICE que, no final de outubro de 2015, teria recebido uma notificação extrajudicial da Deva Curl. No documento, foi ordenado que ela retirasse um post do seu blog, no qual resenhava alguns produtos da marca Embelleze com os nomes “Low Poo” e “No Poo” nos rótulos. Segundo a blogueira, a notificação da Deva Curl explicava como essas marcas atuavam como “parasitas” usando nomes já registrados pela empresa norte-americana para lucrar.

Assustada com a possibilidade de perder seu blog (lotado de menções às práticas), a blogueira entrou em contato com o advogado que a orientou a apagar o post. “Na época resolvi não falar sobre o assunto, mas lendo a entrevista do Denis agora falando que não notificaria nenhuma blogueira ou youtuber senti que precisava falar sobre isso porque ele não está falando a verdade”, conta a blogueira. “Eu falo e indico muito a Deva no meu blog e me senti lesada como consumidora, porque ninguém conversou comigo, só me mandaram a notificação extrajudicial sendo que eles têm meu contato”.

A blogueira recebeu os produtos da Embelleze para resenhá-los (prática comum em blogs de beleza), mas frisa que nunca teve nenhum vínculo comercial com a marca. Ela diz também que após a notificação da Deva Curl, chegou a dar uma entrevista na televisão mencionando as práticas da empresa norte-americana em rede nacional. “Recebi uma mensagem de agradecimento, mas a Deva nunca conversou comigo sobre essa questão. “

Para o advogado Maurício Lia, as empresas que alcançam uma certa fama devido algum produto ou serviço oferecido sempre precisam tomar muito cuidado para não acontecer esse tal processo da diluição. As leis brasileiras, no entanto, não preveem taxativamente uma hipótese de diluição da marca, por isso que esse tipo de imbróglio costuma ser resolvido nos tribunais do país. Ainda assim, o advogado especialista em propriedade intelectual faz um alerta: “Se esse processo estiver em um grau muito forte, esse pessoal [da marca] vai ter trabalho grande marketing e não só no âmbito judicial.”

Por Marie Declercq Repórter agosto 2, 2016

http://www.vice.com/pt_br/read/low-poo-no-poo-polemica-brasil